sexta-feira, 28 de setembro de 2012

004 - Nós não somos nossas mentes

Lembro-me de uma vez, em uma aula de medicina, anos atrás, onde um especialista em ortopedia pediátrica nos explicava sobre o uso da toxina botulínica para o tratamento de paralisia cerebral, uma condição no qual durante o parto, o neonato poderia sofrer hipóxia cerebral de leve à severa (desoxigenação do cérebro) com uma série de sequelas que iam de membros paralisados até profundo comprometimento cognitivo. Através de injeções regulares de toxina botulínica em certos grupos musculares, as articulações se soltava permitindo que os músculos relaxassem e que os procedimentos tanto de higiene pessoal quanto fisioterápicos pudessem ser realizados. O menino, que deveria ter uns cinco anos, entrou na sala sobre uma maca com suas mãos sendo seguras pelas de sua mãe de um modo tão gentil e carinhoso que nos comoveu. De fato, não só as mãos mas todos os quatro membros de seu corpo estavam contraídos. Soubemos também que ele era bilateralmente cego e surdo. Ele não falava e quando vocalizava sua voz lembrava a de um filhotinho de gato chorando, o que os professores nos disseram chamar-se "cri-du-chat". Sua mãe acariava suas mãos e fronte o tempo todo, o que o mantinha calmo mesmo ele tendo a percepção de que estava em um local diferente do que conhecia. Talvez o cheiro de hospital ou o ar-condicionado o fizesse perceber a mudança de ambiente. Como sua mãe havia sido chamada para preencher alguns formulários, ela teve que deixá-lo só por alguns momentos. Ele começou a chorar como um filhote de gatinho. Eu me esgueirei pela cortina e instintivamente segurei suas mãos pálidas nas minhas e delicadamente acariciei seus cabelos. Ele de alguma forma se sentiu protegido e guardado novamente e parou de chorar mas agora eram os meus olhos que estavam com lágrimas. Imaginei o quão frágil ele estava no mundo. Eu pensei que se ele tivesse nascido sem esse problema, ele poderia estar aqui sorrindo e falando com todos. À medida que acariciava as suas mãos ele deixou sair um sorriso espontâneo, com os olhos ainda fechados.


Eu não sabia coisa alguma de Advaita mas eu me lembrei deste instante especial ao ler as linhas do livro que dizia "Seres humanos não são corpos, seres humanos não são mentes, seres humanos não têm definição"...

Martius de Oliveira

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

003 - Nós não somos nossos corpos

Há alguns anos, quando estudava medicina e tive os meus primeiros contatos com anatomia, fiquei espantado ao ver na sala de dissecção os corpos das pessoas parcialmente abertas com as vísceras, músculos e estruturas nervosas e vasculares expostas. Minha visão quase que imediatamente se voltou para os rostos e o aspecto externo de cada uma delas. Afinal de contas, eram essas as fronteiras que até então me permitiam reconhecer o aspecto fisionômico de um ser humano. Fiquei chocado. O cheiro penetrante do formol fazia os meus olhos arderem, as peles das pessoas estavam curtidas como couro e todas com tons de marrom que simplesmente não permitiam nem definir quais eram as raças. As cabeças estavam raspadas e o contraste das vísceras expostas quase toldavam a nossa percepção do sexo delas. Vi que um dos cadáveres era uma mulher não por causa da genitália mas porque ao olhar os pés vi que suas unhas estavam cuidadosamente aparadas e pintadas com esmalte rosa que o formol não havia dissolvido.


Mas em todos aqueles corpos havia ainda algo em comum muito mais profundo e mais impressionante que levava todos os alunos a um silêncio respeitoso. Havia uma intraduzível diferença entre entre nós estudantes e instrutores e os corpos silentes e imóveis nas mesas. Não era a evidente percepção fisiológica de morte que nos causava aquela sensação. O que nos chamava a atenção era justamente o que estava em nós mas não estava neles - a furtiva ausência de vida, de ânima, de energia vital – vida que eu podia ver num galho de planta no vaso do corredor, num inseto se esgueirando no canto da sala, ou numa aranha imóvel na teia sobre o forro do teto. Todos nós, seres vivos, por mais diferente que fossêmos em forma e auto-percepção, estávamos impregnados de algo que fazia de todos nós parte de algo muito maior e que me indaguei se não estaria espalhado por todo o Universo.

Muito anos antes de sequer saber que a palavra Advaita existia, tomei conhecimento de que o que quer que nos definisse não era o nosso corpo físico. Nós definitivamente não éramos os corpos físicos que pensávamos que fôssemos. Levei muito anos para entender, depois, de forma similar, que também não éramos os nossos pensamentos e não éramos nossas emoções. Décadas mais tarde, li as palavras de Jean Klein em "Be who you are" – nós estamos completamente inscientes de nossa verdadeira natureza porque identificamos quem nós somos, com os nossos corpos, as nossas emoções e os nossos pensamentos, perdendo assim a visão do nosso centro permanente, que é pura consciência.

Martius de Oliveira

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

002 - Introdução ao Advaita

Os textos que se seguirão serão uma tentativa de entender a natureza de quem verdadeiramente somos, assim como de tudo o que está a nossa volta. Ainda assim, não importa o quanto queiramos expressar em palavras o que nós entendemos como verdade, porque ela mesma é, em última instância, incognoscível, incompreensível à mente e portanto indescritível em palavras. O que o Advaita e tantas outras filosofias e religiões se esforçam por fazer é conduzir o leitor a níveis cada vez maiores de apreciação intelectual ou diria até mesmo vibracional da verdade, afeitos às suas tradições ou princípios morais ou religiosos, inclusive utilizando como recurso de aprendizado a refutação ou demolição das bases de racionalização utilizados em etapas anteriores. Afinal de contas, muitas "verdades" que nos eram passadas através das tradições de geração à geração provaram ser em muitos casos nada mais do que mito ou superstição. O Advaita em si tenta nos ajudar a perceber que a verdade está, em última instância, muito além da mente.


Eu aprendi que o Advaita Vedanta é uma filosofia que foi sistematizada na Ìndia em torno do séc. VIII DC por um estudioso de nome Adi Shankara mas, que de fato, a essência desse ensinamento já existe há muito mais tempo, baseada em materiais que havia nos Upanishads. Os Upanishads são parte de textos indianos sagrados denominados Vedas, escritos por volta de 1500 AC. Algumas evidências, no entanto, sugerem que os ensinamentos datam de 6000 AC, em uma linguagem escrita denominada Devanagri, que utilizava caracteres em sânscrito. Os Upanishads são encontrados nas seções finais dos Vedas e são chamados de Vedanta. Eles contém as bases filosóficas das práticas das quais o Advaita deriva. As palavras utilizadas em inglês a partir do livro que estou lendo - "Back to the Truth – 5000 years of Advaita" - do autor Dennis Waite, têm que ser entendidas e adaptadas à língua portuguesa, porém trabalho maior foi o do autor que domina o Advaita, a língua sânscrito e a língua inglesa e que descreve que centenas de palavras em sânscrito não possuem equivalente em nossas línguas porque muitos conceitos da filosofia tradicional não encontram similares no Ocidente. Como ele mesmo coloca: "as palavras são diretamente originárias de uma sociedade que diferia drasticamente da nossa".

Advaita, como já foi dito, é uma filosofia não-dualística, o que significa que na realidade não há "dois" de coisa alguma. A princípio, esse conceito não tem nenhum significado para a maior parte de nós e será este conceito de não-dualidade que tentarei explorar, estudar e fortuitamente aprender nos textos futuros.

O problema maior, de que a realidade não pode ser descrita em qualquer sentido, de certo modo, leva os intervenientes, instrutores ou mestres de Advaita a adotarem uma abordagem oblíqua, utilizando histórias e metáforas, lançando mão de "verdades parciais" como amparos ou suportes para conduzir os passos do principiante ao longo da trilha de entendimento. Muito naturalmente, em decorrência disso, o que pode parecer como uma verdade útil e lógica para uns torna-se uma verdade parcial e sem serventia para outros. Há ainda outros aspectos a serem relevados no estudo do Advaita e praticamente de qualquer assunto. Existem pessoas que apreciam a análise lógica e intelectual, ao passo que outras necessitam de orientação prática e asserções solidárias às suas próprias crenças. O que se torna necessário, nesses casos, é um instrutor cujas palavras entrem em ressonância com algum condicionamento mental prévio do instruído.

Advaita diz respeito essencialmente a descobrirmos quem nós somos. Não visa estabelecer o bem-estar de quem pensamos ser. O que será discutido daqui para frente não visa o auto-aperfeiçoamento (já que o Si é perfeito e completo e é uno com o Absoluto). Em verdade, o mundo e o nosso aparente papel nele pouca relevância têm nas discussões que serão abertas. A linguagem, ainda que seja utilizada com o máximo de cuidado, revelar-se-á elusivamente dualística, pois conceitua, define, destaca, distingue e classifica tanto o que é abstrato quanto o que é material. Mas não há como evitar isto e é por isso que prosseguiremos...

Martius de Oliveira


domingo, 23 de setembro de 2012

001 - Uma experiência pessoal de Advaita


Tudo o que estou escrevendo provém de leitura, estudo e reflexão e não propriamente da experimentação direta, embora em raras ocasiões eu tenha tido um vislumbre fugaz de alguns conceitos de advaita ou não-dualidade. Lembro-me de que, em uma ocasião ou outra, principalmente quando era criança, em uma caminhada por uma trilha quase deserta na praia ou acampado em um lugar ermo de um parque nacional, ao me deitar sobre a areia quente ou sobre a relva úmida, olhando para o céu azul tingido de nuvens ou para a noite estrelada e fria das montanhas, escutando o ritmo das ondas quebrando ou o murmúrio do córrego se esgueirando pelas pedras, havia a sensação de perder a fronteira de quem eu era, ou melhor, de quem eu pensava ser. Tornava-me parte de tudo que via, respirava, tocava e mesmo além do que meus sentidos captavam ou do que minha mente pudesse compreender. Esta "perda de fronteira" entre o que imaginava ser e tudo mais à minha volta e além, era uma experiência que não conseguia entender de forma objetiva mas que facilmente sentia com o coração. Embora seja difícil de grafar em palavras o que vivenciei, acredito que muitas pessoas experimentaram esse sentimento de união com tudo, em um ou outro momento de suas vidas. Esse fenômeno não é raro, pelo menos, deveria não sê-lo. Não era a duração desta vivência ou as circunstâncias em que ela ocorria, e sim o alcance no âmago de meu ser que marcava a impressão na memória, que de algum modo se tornava um patrimônio abstrato que carreguei sempre comigo. Por um instante entendia que não era somente parte do Todo mas o próprio Todo. Era como transgredir, por um momento, a ilusão do que o corpo e a mente faziam crer quem eu era. Eu busquei em diversas religiões o significado "espiritual" desta experiência e talvez a leitura que mais proximamente me trouxe a compreensão do seu significado tenha sido o aprendizado da palavra "Advaita", que, em sânscrito, significa "não-dois" (Ad-vaita). Estou começando a ler sobre o assunto agora, mas dada a escassez de material disponível em português, decidi compartilhar momento a momento deste aprendizado com o leitor e, se possível, crescer junto com ele. Afinal, somos todos Um.

Martius de Oliveira